A Atlântida de Platão

Atlântida refere-se a um mítico continente ou ilha situado no Oceano Atlântico, sendo uma terra de uma avançada e antiga civilização perdida, que da noite para o dia desapareceu no mar, pois Atlântida submergiu diante de terremotos. O mito atlante atiça a imaginação de muitas pessoas, há quem considere que possa haver um pingo de verdade por trás dessa misteriosa ilha até hoje nunca descoberta.

Por outro lado, há historiadores, arqueólogos, mitólogos e literatos que consideram que Atlântida seja apenas uma alegoria criada por Platão (428-378 a.C.) para servir a suas críticas políticas. Vale ressalvar que o filósofo já fez isso com sua ideia de “república ideal” e até abordando outros temas filosóficos com o mito da caverna e o mundo das ideias.

Mas afinal, o que Platão escreveu sobre Atlântida? O relato sobre essa antiga e poderosa civilização é mencionado de forma breve em dois livros escritos em forma de diálogos: Timeu, em cuja obra Sócrates inicia um diálogo apresentando sua visão de uma cidade ideal, ideia comentada por outros homens, incluindo Timeu; já o segundo livro consiste em Crítias, que continua o debate do livro anterior, sendo que nessa obra o sofista Crítias apresenta muito detalhes sobre a origem de Atlântida, seus primeiros reis e a descrição de suas cidades (similares ao padrão grego).

No livro de Timeu estrofes 20-26, Crítias exalta poetas antigos como Hesíodo e Homero, fala de seu avô, mas comenta sobre o político Sólon (638-538 a.C.), o qual ao visitar uma terra ao sul do Egito, onde os nativos cultuavam uma deusa chamada Neith (Atena), ali ele ouviu mitos e o relato sobre o passado daquele povo, o qual remontaria oito mil anos antes da época de Sólon. Nos tempos em que ainda existia Atlântida. O sacerdote comenta que a organização política dos atlantes seria similar ao dos gregos, pois esses teriam aprendido com aquele povo ancião tal aspecto.

“Nesta ilha, a Atlântida, havia uma enorme confederação de reis com uma autoridade admirável que dominava toda a ilha, bem como várias outras ilhas e algumas partes do continente; além desses, dominavam alguns locais aquém da desembocadura: desde a Líbia ao Egito e, na Europa, até à Tirrénia [Península Itálica]. Esta potência tentou, toda unida, escravizar com uma só ofensiva toda a vossa região, a nossa e também todos os locais aquém do estreito [Gibraltar]”. (PLATÃO, Timeu, 25B).

Nessa citação acima temos o personagem de Crítias comentando sobre Atlântida, um poderoso reino insular situado para além do Estreito de Gibraltar (Pilares de Héracles). Os atlantes possuíam um império marítimo cuja influência se estendia por parte da costa mediterrânica, recaindo sobre os gregos e egípcios.

“Posteriormente, por causa de um sismo incomensurável e de um dilúvio que sobreveio num só dia e numa noite terríveis, toda a vossa classe guerreira foi de uma só vez engolida pela terra, e a ilha da Atlântida desapareceu da mesma maneira, afundada no mar. É por isso que nesse local o oceano é intransitável e imperscrutável, em virtude da lama que aí existe em grande quantidade e da pouca profundidade provocada pela ilha que submergiu”. (PLATÃO, Timeu, 25D).

Crítias nessa citação diz que Atlântida afundou no mar devido a um grande terremoto catastrófico como um dilúvio que gerou tanta água que afundou a ilha, porém, diferente do que se pensa, esse afundamento não foi tão profundo, pois um “mar de lama” se formou no lugar do desastre, tornando a navegação inviável por conta das embarcações atolarem naquele lamaçal gigantesco.

“Primeiro que tudo, recordemos o principal: passaram nove mil anos desde a referida guerra entre
os que habitavam além das Colunas de Héracles e todos aqueles que estavam para aquém; convém agora que discorramos sobre ela em pormenor. De um lado, segundo se diz, estava a nossa cidade que comandou e travou a guerra até ao fim, enquanto que do outro estavam os reis da Ilha da Atlântida, ilha essa que, como dissemos há pouco, era maior do que a Líbia e a Ásia juntas. Mas, actualmente, por estar submersa graças aos tremores de terra, constitui um obstáculo de lama intransitável para aqueles que querem navegar dali para o alto-mar, de tal forma que nunca mais pode ser ultrapassado”. (PLATÃO, Crítias, 108E).

No segundo livro Crítias o mito de Atlante é abordado entre as estrofes 108-121, os convidados voltam a questionar o velho Crítias por mais informações sobre Atlântida. Num primeiro momento ele basicamente repete o que foi dito no livro anterior, como pode ser lido na citação acima. No entanto, ele insere novas informações ao dizer que naquele passado longínquo, Atenas e Atlântida entraram em guerra. Crítias comenta sobre a paisagem naquele tempo, dizendo que era mais fértil, embora houve muitas inundações que destruíram determinadas localidades; ele cita também alguns reis míticos de Atenas, descreve o passado da cidade; comenta sobre o mito grego do Dilúvio; para finalmente voltar a falar de Atlântida.

Crítias relata que a ilha de Atlântida foi povoada por filhos de Poseidon com uma mortal, sendo que um deles era chamado Evenor, o qual se casou com Leucipe, e tiveram uma filha chamada Clito, a qual interessou Poseidon, que tomou sua neta como amante. Em seguida ele operou grandes obras na ilha.

“Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido, a sua mãe e o seu pai morreram, e então Posídon desejou-a e uniu-se a ela. Então, de modo a construir uma cerca segura, desfez num círculo o monte em que ela habitava, e construiu à volta anéis de terra alternados com outros de mar, uns maiores, uns mais pequenos – dois de terra e três de mar, no total, torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos, para que fosse inacessível aos homens; com efeito, naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava”. (PLATÃO, Crítias, 113D).

Ilustração digital imaginando a capital atlante com base na descrição de Platão.

“Foi o próprio Posídon que organizou o centro da ilha – facilmente, pois era um deus –, fazendo surgir de
debaixo da terra duas nascentes de água – uma quente, outra fria – que corriam de uma fonte e fez brotar da terra alimentos variados e suficientes. Engendrou e criou cinco gerações de varões gémeos e dividiu toda a Ilha da Atlântida em dez partes; entregou a residência materna ao que de entre os mais velhos nascera primeiro, juntamente com a porção que a circundava, que era a maior e a melhor, e nomeou-o rei dos restantes, ao passo que fez destes governantes, bem como atribuiu a cada um o governo de muitos homens e uma região com vastos territórios”. (PLATÃO, Crítias, 114A).

Prosseguindo o relato, o velho Crítias conta que Poseidon teve filhos gêmeos com Clito, esses também tiveram gêmeos por mais quatro gerações. O deus chamou o primeiro rei atlante pelo nome de Atlas (não confundir com o titã Atlas), consequentemente seu país foi nomeado Atlântida (“Ilha de Atlas”). Esse monarca passou a governar na melhor parte da ilha, onde outrora viveu sua mãe. Em seguida, seu irmão recebeu terras no leste da ilha e na Europa, sendo ele chamado Gadiro (ou Eumelo). Seu reino foi chamado de Gadírica (parte da Península Ibérica). Crítias prossegue nomeando as gerações seguintes de gêmeos, dizendo que eles se tornaram reis de suas próprias ilhas ou cidades-estados, os quais compreendiam o império atlante.

Crítias prossegue seu relato dizendo que Atlântida era um país muito rico, abundante em riquezas, possuindo inclusive várias minas, uma delas se destacava o oricalco, metal raro que somente existiria ali. O personagem diz que a ilha era abençoada pelos deuses, possuindo abundância de alimentos e recursos naturais, permitindo que aquele povo prosperasse.

“Por receberem da terra tudo isto, construíram templos, residências reais, portos, estaleiros navais e melhoraram todo o restante território, organizando tudo do modo que se segue. Primeiro, fizeram pontes
sobre os anéis de mar que estavam à volta da metrópole antiga, criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real. Esta zona real, fizeram-na logo de princípio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados. Como cada um, quando o recebia do outro, adornava aquilo que já estava adornado, superava sempre, na medida do possível, o anterior, até que tornaram o edifício espantoso de ver graças à magnificência e beleza das suas obras”. (PLATÃO, Crítias, 115C).

Outra ilustração representando a capital atlante. Ao centro ficaria o grande templo de Poseidon.

O personagem segue descrevendo a capital atlante, falando de seus canais, pontes, muralhas, palácios e templos, apresentando abundância de construções em pedra e até revestidas em metais como cobre, estanho, ouro e oricalco. Crítias também exagera no tamanho das muralhas, canais, estádios e cidades, apresentando-os como gigantescos. Essa descrição reforça a ideia da grande riqueza que aquele povo possuía, a ponto de construir estruturas monumentais.

“No que respeita à população, foi estabelecido que, na planície, cada distrito forneceria um homem que
comandasse aqueles que pudessem servir para a guerra, sendo que o tamanho de cada região era de dez por dez estádios, e, no total, havia sessenta mil distritos. Dizia se que o número de homens das montanhas e do resto do território era infinito, e todos eles, em função dos lugares e das aldeias, estavam distribuídos pelos distritos e adscritos a quem as comandava, conforme o lugar e a aldeia”. (PLATÃO, Crítias, 119A).

Crítias relata que o império atlante era dividido em dez territórios, cada um governado por um rei. Apesar de suas cidades serem bastante organizadas e avançadas, no entanto, seu governo era centrado numa monarquia autoritária, diferente da democracia ateniense da época de Platão.

Apesar de Atlântida ser uma monarquia, seus reis eram sábios e justos, e por gerações seus sucessores foram assim, pois eles eram de origem semidivina. Porém, à medida em que o tempo passava e o sangue divino se perdia a cada geração, a decadência humana foi se instaurando entre os governantes e seu povo.

“Mas quando a parte divina neles se começou a extinguir, em virtude de ter sido excessivamente misturada com o elemento mortal, passando o carácter humano a dominar, então, incapazes de suportar a sua condição, caíram em desgraça e, aos olhos de quem tem discernimento pareciam desavergonhados, pois haviam destruído os bens mais nobres que advêm da honra”. (PLATÃO, Crítias, 121B).

O diálogo de Crítias se encerra de forma abrupta e Platão não o retorna. Somente sabemos que a decadência gerada na civilização atlante a fez perder a proteção de Poseidon e as bênçãos dos outros deuses, então eles foram punidos com a destruição.

Por uma interpretação alegórica, Atlântida representaria a percepção de que até grandes impérios chegam a sua ruína. Além de que no livro de Timeu, Atlântida já estava decadente quando confrontava Atenas, por sua vez, isso até assinalava a superioridade ateniense em resistir as antigas guerras, apesar que Platão não ter detalhado isso. Além disso, a versão que o filósofo nos apresentou, destaca Atlântida como uma nação rica, não necessariamente tecnologicamente avançada, isso é uma interpretação de escritores bem mais tardia.

Referência

PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução do grego, introdução e notas de Rodolfo Lopes. Coimbra: ECH, 2011.

Leandro Vilar
Leandro Vilar

Sou historiador, professor, escritor, poeta e blogueiro. Membro do Museu Virtual Marítimo EXEA, membro do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE).

Artigos: 56
plugins premium WordPress

E-mail

contato@museuexea.org

Endereço de Correspondência

Avenida Governador Argemiro de Figueiredo, 200 - Jardim Oceania, João Pessoa/PB - Caixa Postal 192