Barqueiros, Canoeiros e outros navegantes do Brasil no século 19

Da província do Grão-Pará a São Pedro do Rio Grande do Sul, eles estavam por todos os recantos do litoral brasileiro. Homens comuns,…

Da província do Grão-Pará a São Pedro do Rio Grande do Sul, eles estavam por todos os recantos do litoral brasileiro. Homens comuns, realizando tarefas árduas, vento, sal e Sol no rosto. Às vezes na vela ou usando a força dos braços. Todos tinham algo em comum: o mar como caminho. Entre 1830 e 1870, pesquisando em jornais de diferentes províncias do Império, encontramos registros de suas vivências cotidianas.

De antemão, é necessário relembrarmos que vivíamos sob um sistema Escravista, em que toda sociedade e economia nacionais estavam de uma maneira ou de outra, dependentes do trabalho escravo ou livre de uma população majoritariamente negra, mestiça e indígena. Portanto, não surpreende que, na maioria dos relatos que encontramos destes profissionais, fazem-se referências à condição de cativo. Graham (2013), ao falar do cotidiano da cidade de Salvador na Bahia, no início do século 19, expõe a importância que esses profissionais tinham, trazendo gêneros alimentícios por toda a Baía de Todos os Santos.

Eles tinham várias denominações: Barqueiros, Remadores, Canoeiros, Mestres de barcaça. Em 1869, diversos desses profissionais são mencionados em jornal da província de Pernambuco: marinheiros, nadadores, mestres de barcaça de escavação (dragagem). Todos trabalhavam nas docas do Recife, e auxiliaram na manutenção de ponte sob o Rio Capibaribe, atingido por fortes cheias naquele período.

Como afirmamos acima, grande parte desses profissionais estavam sob a condição de cativos. Nos anúncios de escravizados, entre as competências ou habilidades dos sujeitos, estava inclusa também a perícia em lidar com embarcações, a exemplo do anúncio divulgado na Corte (Rio de Janeiro), em 1840.

Tais registros destes profissionais, portanto, são extremamente comuns, e nos traz uma ideia da diversidade de trabalhos ligados ao mar e de “gente do mar”. Os portos brasileiros possuíam uma grande quantidade desses profissionais, extremamente requisitados e necessários em um período onde o que imperava era a força dos braços nos remos e no manuseio das velas. O vapor estava em “sua infância”, e os motores a combustão que vemos hoje em abundância em lanchas, não existiam. Logo, quanto mais profissionais houvessem, melhor. E mais ainda: a experiência e perícia contavam, para evitar acidentes.

O pintor francês Jean Baptiste-Debret fez registros únicos destes homens do mar em seus anos de estadia no Brasil. Ele foi um dos grandes responsáveis por ilustrar o recém-criado Império, e graças a ele, temos ideia das várias atividades cotidianas da época e claro, os profissionais ligados ao mar não poderiam ficar de foram, tento em vista a importância que o Rio de Janeiro assumiu neste período. Seu porto era um dos mais movimentados do mundo.

A imagem acima, trata de um barqueiro-comerciante. Ele está com sua embarcação abarrotada de produtos para vender, principalmente frutas, pães e há no barco mesmo uma panela e forno prontos para fornecer refeições quentes a seus compradores, provavelmente marujos das centenas de navios que ficavam ancorados na Baía de Guanabara, aguardando atracação. A cena, foi registrada no Rio de Janeiro, em 1825.

Barqueiros e Canoeiros, portanto, auxiliavam no transporte de pessoas, eram usados no comércio e também, no transporte de materiais úteis. Matérias-primas que seriam caras demais para serem transportadas em embarcações maiores ou, que eram utilizadas para trazer produtos destes navios maiores até as praias onde o baixo calado não permitia navios mais pesados: esta tarefa era executada pelos homens que tripulavam chalupas, sumacas, barcaças e outros tipos de embarcações assim denominados para este fim. Debret fez registro de uma delas no início do século 19, também no Rio de Janeiro na imagem que segue:

Em um primeiro plano, vemos homens negros, provavelmente escravizados, carregado telhas que acabaram de ser desembarcadas de uma embarcação de fundo chato (provavelmente uma Sumaca). Vê-se que outros homens ajudam a desembarcar o material. Esta cena também foi registrada no litoral da província do Rio de Janeiro, em 1825. Por fim, citarei o caso da barcaça chamada “D. Frei Vital”, de propriedade do mestre Florentino Ferreira Mendes. Esta embarcação fazia transporte costeiro de cargas e passageiros entre as províncias da Paraíba e de Pernambuco. Na reportagem do jornal datada de 1878, uma nota afirmava que o dono da referida barcaça estava sendo acusado injustamente de roubo. Em março de 1878,

a embarcação zarpou de Mamanguape (litoral norte da Paraíba) em direção a Recife. A bordo, estavam pessoas das Elites latifundiárias locais: D. Anna, mãe do Dr. Campello e as filhas do coronel José Gomes da Silveira e Manoel Cruz. (José Gomes da Silveira era senhor de Engenho no litoral Norte da província da Paraíba e tinha negócios entre as duas províncias). Contudo, na chegada ao porto do Recife, o mestre foi acusado pela “matrona” de roubo, pois ela constatou que de uma das malas, havia sido extraviada uma quantia avaliada em 300$000 (trezentos mil réis). Para a sorte do mestre Mendes e de sua tripulação, a quantia foi encontrada por Dona Anna, no dia seguinte, em uma das malas.

No entanto, o mestre expos o caso no Jornal do Recife, por temer que a sua reputação e a de sua tripulação fosse manchada. Não apenas defendeu-se, como declarou que as “insinuações” contra ele e seus homens eram “suspeitas infundadas da mesma senhora, “imputações injuriosas por ela lançada” contra ele. Na nota, o mestre Mendes também “agradecia aos amigos e carregadores desta praça a defesa que tomaram a bem de seu crédito” (JORNAL DO RECIRE, 1878, – ed. 61 – p. 2).

O caso que expus acima, mostra muitas coisas interessantes: que entre os litorais das províncias, existia toda uma rede de transporte marítimo fluindo constantemente entre estas regiões, com diversos tipos de embarcações menores e profissionais do mar dedicados a elas; que a Elite latifundiária, apesar da opulência, nem sempre poderia contar com os grandes paquetes/veleiros para transporte entre regiões próximas: ao contrário, a elas era mais conveniente solicitar o trabalho de Mestres de Barcaça como o mestre Mendes: experientes e conhecedores da rota marítima costeira e de seus possíveis perigos. E por fim, a solidariedade entre homens do mar ante uma situação de aparente injustiça, bem como a capacidade de articulação para uso da imprensa para divulgação, que não era barato neste período.

FONTES:

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (RJ).

Correio Mercantil (RJ) – 1831.

Diário do Rio de Janeiro (RJ) – 1840.

Jornal do Recife (PE) – 1869.

Jornal do Recife (PE) – 1878.

O Liberal Pernambucano (PE) – 1853.

Acervo MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul).

Jean Baptiste Debret – 1823-1825.

Disponível em: https://www.margs.rs.gov.br/

Bibliografia

GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade: Das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

George Henrique
George Henrique
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