No ano de 2019, o Brasil recebeu com perplexidade notícias veiculadas pela imprensa relacionadas diretamente ao mar. A primeira, foi o terrível acidente ambiental ocorrido na costa do Nordeste brasileiro em que um navio-tanque estrangeiro não-identificado despejou toneladas de óleo cru na superfície. O material foi parar nas praias de quase toda a região, causando grande degradação ambiental. A população das cidades e povoados localizados ao longo das áreas atingidas no litoral, antecipando-se às autoridades governamentais, correram às praias para iniciar trabalho voluntário para remoção do petróleo. Milhares de pessoas que tiveram contato direto com o material foram hospitalizadas com intoxicação decorrente do contato com o óleo.
Quase ao mesmo tempo, naquele mesmo ano de 2019, notícias davam conta do surgimento de “caixas” em diferentes pontos do litoral do Nordeste vindas através do oceano. Elas chegaram às praias do litoral de toda a região, desde o Ceará até Alagoas e Sergipe. Até pouco tempo atrás, no final de 2020, elas continuaram a ser vistas descendo o litoral brasileiro, chegando até a Bahia. Questionava-se suas origens: teriam também sido despejadas pelo navio-tanque responsável pelo vazamento de petróleo?
Pesquisadores das universidades brasileiras, notavelmente das federais do Ceará e de Sergipe, ao analisar o material coletado, concluíram tratar-se de fardos de Borracha. Especulou-se novamente sua origem: teriam vindo do litoral africano através da corrente marítima? Analisando mais profundamente, viram que no interior dos fardos e na superfície de alguns havia inscrições que indicavam sua origem: Indochina Francesa. A partir daí, vieram mais questionamentos: a Indochina era o nome dado à antiga colônia francesa no sudeste asiático, que deixou de existir na década de 1950 (atualmente esta região compreende o Vietnã). Como poderia este material ter surgido repentinamente no Atlântico Sul em pleno século 21?
Chegou-se então à conclusão obvia: as ”Caixas” misteriosas eram muito mais antigas do que se supunha. E sua origem não estava na superfície, mas no fundo do Atlântico. A mais de cinco quilômetros de profundidade, para ser mais preciso. Lá, jazem os naufrágios de três navios, mas um em especial é digno de menção: o ‘MV Rio Grande’. E o que isso tudo tem a ver com a Batalha do Atlântico? Isso demanda uma explicação, e para tal precisamos voltar quase 80 anos no tempo: durante a II Guerra Mundial (1939-1945), as batalhas ocorreram em terra, no ar e no mar entre as forças Aliadas e o Eixo.
O controle dos mares era fundamental para o esforço de guerra, sendo assim, as nações envolvidas procuraram meios para utiliza-lo a seu favor, ora procurando anular as ações do inimigo, ora utilizando-se do oceano para o transporte de homens e materiais. Neste quesito, a Alemanha Nazista saia em desvantagem em relação aos seus adversários. O Tratado de Versalhes (1919) assinado pós a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) havia limitado aquele país proibindo-o de possuir uma Marinha de Guerra, especialmente submarinos. Porém, já nos anos 20 ainda na República de Weimar, os militares alemães secretamente iniciavam planos para a reconstrução de sua outrora gloriosa armada. No começo, as dificuldades levaram a adaptações às circunstâncias: limitados em relação à tonelagem dos navios, os alemães só podiam construir embarcações menores. Assim compensaram o fato de não possuir Encouraçados com dois tipos de embarcações: o chamado Panzerschiff (Navio Blindado), que ficou conhecido pelos britânicos como “Couraçado de Bolso” e os Submarinos, os U-Boats.
Além dois dois citados acima havia um terceiro que aqui nos interessa: os Navios-Corsário. A estratégia de corso foi muito utilizada ainda no século 20 e baseava-se da seguinte maneira: eram Navios Mercantes disfarçados, com grandes quantidades de armamento e tripulações muito bem treinadas, que circulavam todos os oceanos do globo terrestre em especial no Oceano Atlântico à procura de potenciais vítimas. Objetivavam assim destruir a navegação mercante aliada (especialmente a da Inglaterra). A British Commonwealth (comunidade britânica de nações) era vital para a sobrevivência do Império Britânico. Os Navios-Corsário alemães portanto, assim como as outras embarcações, precisavam patrulhar pontos-chave de elo de contato da Inglaterra com suas colônias e estes pontos estavam em dois locais: o Mar Mediterrâneo (Canal de Suez), o Caribe e o Atlântico Sul (Costa Brasileira, Costa Africana até a Cidade do Cabo).
No ano de 1944, a maré da guerra havia virado totalmente contra o Eixo. A destruição das Indústrias alemãs pelos bombardeiros aliados e o escasso acesso a recursos e matérias-primas levou o governo da Alemanha Nazista a tomar medidas desesperadas. Os outrora perigosos Navios-Corsário agora eram caçados pelo Atlântico, bem como os U-Boats (submarinos). Naquele ano, uma última tentativa seria feita para tentar levar recursos da Ásia para a Europa via Atlântico. Os navios que praticavam corso agora seriam usados como Forçadores de Bloqueio (em inglês, Blockade Runners). A estratégia consistia em embarcar em navios-mercantes disfarçados o máximo de recursos possíveis e fazer adentrar o Atlântico a toda a velocidade, evitando contato com o inimigo, sendo disfarçados nomes e nacionalidades.
Assim, três corsários alemães partiram rumo à Europa: eram eles o “Rio Grande”, o “Weserland” e o “Burgenland”. Após passagem pelo Índico sem maiores problemas, adentraram o Atlântico Sul, na virada do ano entre 1943 e 1944. O destino dos navios alemães e de sua preciosa carga será contado mais adiante, em uma próxima postagem!
Fontes utilizadas:
Imagens: https://digitalcollections.nypl.org/
https://www.wrecksite.eu/
https://agorarn.com.br/
Referências: HERWIG, Holger. ‘Luxury’Fleet:(RLE The First World War): The Imperial German Navy 1888-1918. Routledge, 2014.
SONDHAUS, Lawrence. Naval Warfare, 1815-1914. Routledge, 2012.
DARÓZ, Carlos. O Brasil na Primeira Guerra Mundial: a longa travessia. Editora Contexto, 2016.
WILLIAMSON, Gordon. Kriegsmarine auxiliary cruisers. Bloomsbury Publishing, 2012.
CRUZ, Luiz Antônio Pinto. A Guerra do Atlântico na Costa do Brasil: rastros, restos e aura dos U-boats no litoral de Sergipe e da Bahia (1942-1945). 2017.