exposição virtual memórias

E la nave va...

por Professor Doutor Vasco Mantas

Hoje vou escrever não sobre navios mas sobre uma viagem marítima, talvez aquela que poderei considerar a viagem. Também não vou evocar o filme de Fellini, embora a alegoria de quebra da rotina que embalava a Europa em 1914 se possa transferir para a travessia que serviu de cenário ao que pretendo transmitir, ainda que falha de divas e de notáveis. Mas, antes do navio, saltemos para o comboio e recuemos no tempo.

É uma e quinze da noite de Sábado, 20 de Novembro de 1965. Em Estremoz está húmido e frio, embora de momento não chova. De qualquer forma, o frio é outro. Na estação de caminho-de-ferro, o Batalhão de Cavalaria 1868 está a bordo da composição que em breve partirá em direcção a Lisboa, por Vendas Novas. Há bastante gente no cais, na maioria militares e familiares dos soldados, quase todos alentejanos, que aproveitaram para introduzir no comboio os vários canídeos que se aproximaram. O veterano cão Totobola acompanhou a Companhia 1465 e connosco permaneceu até morrer quase no final do tempo a cumprir. Mas isso são outras histórias, como diria Kipling.

A estação de caminho-de-ferro de Estremoz tal como era há sessenta anos
A estação de caminho-de-ferro de Estremoz tal como era há sessenta anos

Despedi-me da minha noiva horas antes, num dos momentos mais intensos da nossa vida. Tínhamos a angustiante sensação de que, encontrados, logo eramos afastados por uma prova que nos ultrapassava e na qual pouco dependia de nós. Valeu-nos a devoção um ao outro, consagrada sem palavras numa pequena capela dos arredores de Estremoz, alguns meses antes. Nada de lágrimas, na altura do adeus, pois isso apenas nos enfraqueceria. A viagem de comboio foi lenta e incómoda, através de paisagens envoltas em escuridão, dando azo, como é natural, a pensamentos controversos. Era a guerra, que se instalara inevitável no quotidiano português. Mas tinha comigo algo que me ia sustentar até ao fim da viagem, em Luanda.

O paquete Vera Cruz estava no cais, ainda imponente, e o embarque verificou-se pelas onze horas de uma manhã sombria e decerto triste para muitos dos que iam e dos que ficavam. A partida de um grande navio é sempre emocionante, em particular quando se trata de um transporte militar. E lá fomos barra fora, passando sobre os restos de alguns naufragados da Carreira da Índia que por ali repousam, ecoando as proféticas palavras do Velho do Restelo, idênticas em sentido às que Albuquerque terá dito a propósito da nossa empresa imperial: Glória e Fumo! Foram dez dias de viagem, um tanto monótona, entrecortados por algum serviço e reuniões preparatórias do desembarque. As estrelas foram mudando no horizonte e o calor começou a fazer-se sentir e até o ar ganhou novos aromas sobre um mar tranquilo, liso. Sendo velho, tudo começava a ser novo!

Militares a bordo do Vera Cruz pronto a zarpar. Eu estou sob o traço.
Militares a bordo do Vera Cruz pronto a zarpar. Eu estou sob o traço.

De vez em quando refugiava-me no Jardim de Inverno do navio, para escrever e ler tranquilamente – os livros que me acompanharam foram O Visconde Cortado ao Meio e O Cavaleiro Inexistente, de Italo Calvino, bem como o muito ambíguo Calafrio, de Henry James – mas sobretudo para ler o lenitivo com que enfrentei a separação: as dez cartas, uma para cada dia de viagem, que a minha noiva me escreveu para que a tivesse comigo de alguma forma mais íntima ao longo da travessia, cartas entregues na véspera do embarque. 

Num transporte militar não há privacidade pelo que este espaço do navio era o ideal para uma leitura sempre seguida de várias releituras, até à próxima carta no dia seguinte. Todas estavam numeradas, e assim permanecem na minha mesa-de-cabeceira. Claro que não vou aqui revelar o que era apenas entre nós e assim deve ficar. Mas não se imaginem coisas, pois, como disse, tínhamos convicções claras quanto ao casamento, que nos aguardava no Verão seguinte, durante as férias docentes dela e a minha licença, ia a comissão angolana a um terço.

Um momento no Jardim de Inverno do Vera Cruz a caminho de Luanda.
Um momento no Jardim de Inverno do Vera Cruz a caminho de Luanda.

A minha noiva já vivera em África, pelo que não deixou de me alertar para as tentações diversas de um cenário diferente do europeu, por vezes dizendo-o veladamente. Dos outros perigos, os da guerra, não falou muito, tão presentes eles estavam que não era preciso evocá-los. Tentou, sim, fazer-me crer que tudo correria bem. Mas sei que essas linhas lhe custaram a escrever e a mim a lê-las, sem que alguma vez tivesse questionado a causa da separação, decerto por atenção comigo. Havia muitos parágrafos sobre momentos vividos e sobre intenções a concretizar, uma forma de fazer antecipar o futuro depois, dado que então tudo se media pela experiência a vencer. Como é humano, parte desse depois sucedeu de forma diferente, mas o fio condutor de todas estas cartas transmitia uma inabalável confiança protectora, que permanece e revive a cada leitura, agora pontuada de tristeza, esgotados os muitos anos que nos foram concedidos.

O navio avançava, sem escalas nem costa visível. Sabia que teria uma carta à espera em Luanda, prometida no momento da despedida. Tornou-se visível o Cruzeiro do Sul e as noites definitivamente quentes, embaladas pelo ronronar dos motores, diziam-me que se aproximava o há muito esperado. Chegámos cedo a Luanda. Sobre um mar sem rugas pairavam raros ruídos, apenas o sopro pujante da terra africana se imiscuía, dominador. Luanda resumia-se a uma longa fiada de edifícios no limite do mar, velados por uma neblina ligeira, sugerindo um vazio absoluto para lá deles. Compreendi então os relatos medievais sobre os confins do mar onde os navios se despenhavam no abismo, porque era isto. Depois foi o desembarque, já sem as paradas ovacionadas de 1961, e o comboio até ao Campo Militar do Grafanil, atravessando os musseques, rodeados de garotada. Foi uma visão que me impressionou, pois não era esta a minha ideia de Império. Mas eu já vira os bairros de lata a crescer à volta de Lisboa. Porque haveria de ser diferente? Felizmente estava em Luanda a carta prometida.

Postal do N/T Vera Cruz, da CNN, navegando em velocidade no alto-mar.
Postal do N/T Vera Cruz, da CNN, navegando em velocidade no alto-mar.
O porto de Luanda, em 1965, vendo-se a alfândega e a administração.
O porto de Luanda, em 1965, vendo-se a alfândega e a administração.

Depois houve muitas outras cartas, mesmo durante o nosso tempo vivido em Angola, a seguir ao casamento, antes de nos reunirmos definitivamente em Luanda. De lá saímos anos depois noutro belo paquete, o Príncipe Perfeito, agora em viagem civil, sem cartas e com escalas, e um notável a bordo, o Gen. Costa Gomes. Foi de noite, havia cacimbo e a última imagem que guardo da terra angolana, mergulhada em trevas profundas, é a fraca luz do farol de Ambriz. Nunca esquecerei o gesto da minha esposa e a simplicidade da força contida naquelas dez cartas, bem própria dela. Muito obrigado, para sempre, Maria Reveriana.

Coimbra, 14 de novembro de 2024

Vasco Gil da Cruz Mantas

Créditos

Exposição Virtual Memória: E la nave va...

Texto e Fotografias

Prof. Dr. Vasco Gil da Cruz Soares Mantas
Universidade de Coimbra e Academia de Marinha / Portugal

Diagramação

Ticiano Alves
Coordenador de Exposições / Designer
Museu Marítimo EXEA

Revisão da Exposição

Leandro Vilar
Diretor Geral
Museu Marítimo EXEA

Raphaella Belmont Alves
Diretora Executiva | Revisora ortográfica
Museu Marítimo EXEA

Camila Rios
Diretora Técnica | Museóloga
Museu Marítimo EXEA

cropped-cropped-Logo-Escura-Simplificada-Museu-EXEA.png
plugins premium WordPress

E-mail

contato@museuexea.org

Endereço de Correspondência

Avenida Governador Argemiro de Figueiredo, 200 - Jardim Oceania, João Pessoa/PB - Caixa Postal 192