EXPOSIÇÃO VIRTUAL

A navegação mercante em tempos de guerra

Introdução

Por Historiador George Henrique

Imagine-se na seguinte situação: você é tripulante de um navio, que viaja pelo mundo transportando mercadorias, embarcando e desembarcando passageiros. De repente, após chegar em um porto distante, em uma pequena vila, de clima quente e sufocante, bem diferente de sua terra, com gente de hábitos e costumes estranhos ao seu, é impedido pelas autoridades locais de zarpar com seu navio de volta para seu país, ficando anos preso no lugar, no mesmo porto, diante uma rotina tediosa…um verdadeiro pesadelo, não é?

Parece roteiro de um filme de ficção, mas foi exatamente isso que ocorreu com os tripulantes alemães dos vapores “Minnenburg”, “Salamanca” e “Persia” no ano de 1914, há quase 110 anos. Esta é apenas uma parte de sua História. Mas o destino dos tripulantes alemães e seus navios não pode ser explicado apenas pelos fatos em si, nas narrativas dos jornais da Paraiba, de Pernambuco e do Rio de Janeiro: é preciso ir além. Porque ali estavam? De onde vieram, o que faziam e para onde iam? E mais: o que eles fizeram durante todo esse tempo para superar a solidão, o tédio e a saudade da Vaterland? 

Ao leitor e a leitora, cabe em primeiro lugar, explicar o porquê de os alemães estarem ali, no cais da Vila de Cabedelo, um pequeno povoado da costa Nordeste do Brasil, que no início do século passado, possuía uma população pequena. Ao mesmo tempo, seu cais (trapiche ou molhe) era um lugar de grande importância para a economia local, porta de entrada do mundo exterior e de exportação e importação dos produtos tão necessários à economia do estado da Paraíba. Eis os fatos.

SeÇão i

Alemanha: da unificação à “Weltpolitik”

Em 1871, a Alemanha tornou-se uma nação unificada e independente. Com um grande poderio industrial e bélico, a nova nação localizada na Europa Central tornou-se de imediato uma nova e importante peça chave no equilíbrio de poder mundial, vista agora como adversária direta da França e da Inglaterra, seus concorrentes diretos. Assim, Otto von Bismarck de imediato percebeu que apesar de ser uma nação desenvolvida, era necessário à Alemanha, expandir-se. A busca por colônias e novos mercados consumidores oriunda da chamada “Weltpolitik” levou em 1887 à famosa “Partilha” da África e da Ásia entre as potências europeias.

Para o desgosto de Bismarck e dos alemães, a nação germânica ficou com uma fatia pequena de colônias na África e Ásia. Ainda assim, eram territórios que poderiam futuramente trazer grandes lucros às empresas alemãs. Ao mesmo tempo, expandir-se pelo globo demandava duas coisas: uma poderosa Marinha de Guerra para defender seus interesses externos e aumentar a tonelagem de sua Frota Mercante. Empresas alemãs de navegação nas últimas décadas do século 19 expandiram-se de forma rápida, ampliando seu alcance global e suas rotas. Haviam navios ostentando a bandeira vermelha, branca e preta em todos os oceanos da Terra no início de 1900: navios cada vez mais rápidos, mais confortáveis e maiores.

Portanto, a Alemanha adentra o século 20 como uma potência cujo poderio expansionista sob um ponto de vista militar e econômico, crescia a largos passos. A competição pela supremacia dos Mares levou a uma corrida armamentista com o Império Britânico, cuja Marinha de guerra era a mais poderosa do planeta. Os gastos militares se expandiram, demandando mais recursos, mais mão-de-obra, e tudo isso passava pela expansão das atividades comerciais. E onde o Brasil entra nessa jogada?

Seção iI

O Brasil e suas relações com a recém-unificada Alemanha

Tendo desde meados do século 19 sido um dos principais destinos da imigração alemã (especialmente para a região Sul e Sudeste), devido a fatores como o fim gradual da escravidão, o Brasil a muito tempo, tinha relações comerciais com os estados alemães livres, como Hannover, Hamburgo e Bremen. Estas relações cresceram após a unificação alemã em 1871, bem como a imigração: cada vez mais se vê alemães em território brasileiro, trabalhando das mais diversas formas, desde diplomatas, engenheiros até trabalhadores braçais, camponeses, operários, oficiais e marinheiros através das companhias de navegação.

Os intercâmbios entre os dois países crescem também na área militar: as forças armadas brasileiras agora sob regime republicano observam a eficácia militar alemã, especialmente após a retumbante vitória sob a França na Guerra Franco Prussiana. Armamentos, equipamentos e mesmo os uniformes militares alemães passam a fazer parte do cotidiano do Exército e da Marinha do Brasil. Navios de guerra alemães visitam o litoral brasileiro com grande frequência, especialmente em missões diplomáticas, em uma demonstração de respeito e cordialidade entre os governos alemão e brasileiro.

O Brasil, como grande exportador de matérias-primas (ou commodities), especialmente de Café, Algodão, Açúcar, Couros, Óleos, Carnes entre outros passa a ter grande aceitabilidade pelo “faminto” mercado alemão em plena expansão. Maquinários, Navios, Tecnologia e Químicos alemães adentram cada vez mais o mercado brasileiro. As companhias de navegação alemãs se fazem presentes cada vez mais e os agentes de companhias na virada do século 20 estão presentes em praticamente todos os estados da federação, incluindo a Paraíba.

Seção iII

As companhias de navegação alemãs no Brasil

Entre as companhias mercantes alemães principais que atuavam no mundo inteiro em especial no Atlântico na virada do século 19 para o 20, destacamos em primeiro lugar, o serviço de passageiros, que atendia às demandas de uma Elite, que viajava na 1ª Classe dos luxuosos e rápidos transatlânticos e das classes pobres, que imigravam em busca de melhores condições de vida na América. Um dos principais destinos como citado acima, era o Brasil.

Citamos agora, as principais companhias de comércio e navegação alemãs que operavam no Atlântico e no litoral brasileiro no período. São três, sendo a primeira, a HAPAG, sigla para Hamburg-Amerikanische Packetfahrt-Actien-Gesellschaft. Esta companhia foi fundada em 1847, em Hamburgo.

A segunda, era a Norddeutscher Lloyd, fundada em 1857 na também cidade portuária de Bremen, norte da Alemanha.

A terceira companhia de navegação alemã era a Hamburg Süd (sigla de Hamburg Südamerikanische Dampfschifffahrts-Gesellschaft), também com sede na cidade portuária de Hamburgo.

Estas três companhias, junto a outras sete grandes companhias, de acordo com dados coletados a partir da Revista Marítima Brasileira do ano de 1919, contabilizavam 3.194.000 toneladas em 1914, antes do início da I Guerra Mundial. Herwig (2014) contra argumenta, afirmando que a frota mercante do Reich (navios acima de 100 toneladas) cresceu metodicamente de 82.000 toneladas em 1872 para 5.134.000 toneladas em 1914 (HERWIG, 2014, p. 2).

Tantos navios e tanta mercadoria demandavam, portanto, bons oficiais e tripulações bem treinadas para conduzi-lo. Porém, existem algumas situações em que nenhum treinamento ou vivência é capaz de prever. Foi o caso dos navios alemães que estavam no litoral paraibano no ano de 1914. Entre os meses de julho e agosto de 1914, três navios mercantes alemães estavam no cais (trapiche) da vila de Cabedelo, no litoral da Paraíba. Alguns deles conduziam cargas e passageiros e o destino final no Brasil seriam o Rio de Janeiro e o litoral de São Paulo.

Porém, foram surpreendidos com as notícias vindas da Europa: a 1ª Guerra Mundial tivera início e a Alemanha, aliada do Império Austro-Húngaro, estava em guerra contra o Império Russo, a França e o Império Britânico.

Seção iV

Os mercantes alemães nos portos brasileiros: a longa estadia

Receoso de ataques ingleses, o capitão Otto Kreyer, comandante do Salamanca, decidiu realizar uma “arribada forçada” ao local mais próximo e seguro do qual o navio alemão estivesse. Coincidentemente, estavam navegando próximos do litoral paraibano. Decidiram assim, adentrar o estuário do rio Paraíba e aguardar o desenrolar dos acontecimentos.

Uma vez em Cabedelo, a primeira providência a ser tomada foi o imediato desembarque dos passageiros [1] que se encontravam no Salamanca e nos outros dois navios alemães que estavam no porto: o Minnenburg e o Persia. Junto aos passageiros de outros navios alemães que também decidiram ficar nos portos brasileiros, foram transferidos para o vapor Olinda, do Lloyd Nacional, sendo conduzidos em seguida, ao Rio de Janeiro.

[1] Até o momento, nas listagens de passageiros desembarcados no Brasil no mesmo ano, não encontramos referências do Minneburg ou do Persia, o que leva a crer que eram apenas navios de carga, diferentemente do Salamanca que levava passageiros.

VIGILÂNCIA

O Salamanca, agora acompanhado dos também alemães Minneburg e o Persia, aguardavam seus destinos. A segunda providência tomada pelos alemães foi a venda da carga que transportavam, pois, a mesma já não seria mais transportada para lugar algum, nem haveria transferência para outros navios. Do Salamanca, foram leiloadas caixas com batatas, alho e cebolas. Assim, conformados em seu cativeiro forçado em um país até então neutro, as alternativas para passar o tédio e manter-se sãos eram extremamente dificultosas. A começar, pelo fato de que eles, por serem de uma nação beligerante, eram constantemente vigiados, tanto pelas autoridades policiais como pela Marinha.

PARAÍSO OU INFERNO TROPICAL

Outro grande problema enfrentado pelos alemães em sua estadia forçada foram as doenças tropicais e o clima. Oriundos de um país frio, o calor dos trópicos lhes era insuportável, bem como deveriam ser os insetos e a falta de conforto e lugares adequados para hospedá-los. Em julho de 1915, Paul Kolp, tripulante do Persia, foi levado até o hospital Santa Isabel em Cidade da Parahyba (hoje João Pessoa) com sintomas de “febre palustre intermitente”.

Seção V

O Clima da Grande Guerra chega à Cabedelo

Em setembro de 1915, um fato no mínimo inusitado: marujos ingleses do vapor Professor, que se encontrava no mesmo cais, encontraram-se com marujos dos navios alemães no bar do Hotel dos Viajantes nesta vila. Lembrem-se que as duas nações estavam em guerra naquele momento. Ao adentrarem o recinto, a princípio, ocorreu diálogo amistoso entre as partes. Porém, na medida em que dialogavam sobre a guerra e ficavam mais exaltados sob efeito das bebidas alcoólicas, consta que os alemães e britânicos por pouco, não “transformaram Cabedello em Neuve-Chapelle” [1]. O confronto fora contornado segundo o relato, por intervenção do tenente Eduardo, delegado da polícia local, que recolheu os exaltados aos seus respectivos navios.

Da mesma forma que encontravam consolo na bebida durante a internação, os alemães acabaram por recorrer também à prostituição. Em um relato policial, três oficiais do Minneburg foram presos pela polícia, ao tentar adentrar o prostíbulo em que se encontrava Joanna de tal, residente na rua do Arame à alta hora da noite [2]. A arruaça teria sido perpetrada por Ferdinand Schneider, piloto daquele navio.

Foi neste mesmo estabelecimento, que na páscoa de 1916, os tripulantes alemães celebraram, “cantando acaloradamente”, e sob grande efeito de álcool, situação que lamentavelmente, terminou em confronto entre tripulantes do Minneburg e do Salamanca. Em total contraste com as farras e a bebedeira desenfreada dos matrosen, os oficiais comandantes dos navios vivenciavam ocasiões e espaços de sociabilidade diferentes, um reflexo da hierarquia social existente a bordo.

Oficiais não se misturavam com a “marujada”, mesmo na Marinha Mercante. Em janeiro de 1916, durante um ball-masquè [3] organizado por veranistas da praia de Formosa em Cabedelo, estavam presentes diversas pessoas influentes da capital, Parahyba do Norte. No pavilhão da praia de Ponta de Mato [4], as elites moradoras da capital passavam os carnavais veraneando para “fugirem” dos afazeres usuais. Dentre os convidados daquele baile carnavalesco praiano, encontravam-se oficiais do navio alemão Persia: o seu comandante, Hans Habelmann, sua senhora e outros oficiais do mesmo navio[5]. Percebe-se aqui o contraste entre as duas realidades e os privilégios.

[1] O NORTE, 1915, ed. 2098, p. 2. Refere-se a “Neuve-Chapelle”, uma batalha ocorrida no front Ocidental entre alemães e franceses no mês de março de 1915.

[2] O NORTE, 1915, ed. 2179 – p. 2.

[3] Baile de máscaras, festa a fantasia carnavalesca.

[4] Duas praias localizadas no lado Leste de Cabedelo. Neste local, famílias das elites da capital paraibana possuíam casarões onde veraneavam em certas datas do ano, em especial no Carnaval.

[5] O NORTE, 18 de janeiro de 1916, ed. 2201, p. 1.

Seção VI

De internos forçados a prisioneiros de guerra

O ano de 1917 foi marcado por grandes mudanças no decurso da I Guerra Mundial. As ações dos U-Boats (submarinos alemães) que a partir daquele ano, indiscriminadamente, passaram a atacar quaisquer navios mercantes de nações neutras que comercializassem com a Inglaterra ou com a França, atingiram em cheio o Brasil.

Ataques a navios brasileiros realizados por U-Boats na costa ocidental Europeia e no Mediterrâneo, levaram ao rompimento das relações diplomáticas com a Alemanha no dia 11 de abril de 1917. Em 2 de junho, o governo brasileiro através do decreto 12.501, ordenava a apreensão de todos os navios mercantes alemães que, desde 1914, estavam internados em portos brasileiros (DAROZ, 2018, p. 95). Somente no dia 25 de outubro daquele mesmo ano, o Brasil declarou guerra à Alemanha.​

O decreto que apreendia os navios alemães chegou ao conhecimento das autoridades políticas e militares na Paraíba e a imprensa agora debatia sobre qual seriam os procedimentos feitos e os destinos dos tripulantes alemães presos no porto de Cabedelo. No dia 5 de junho, as notícias sobre a apreensão e ocupação dos navios já tomavam as manchetes na capital federal. No dia 5 estiveram a bordo dos navios alemães o capitão do porto, comandante Cyro Câmara da Marinha do Brasil e o agente do Lloyd Brasileiro, coronel Albino Moreira.​

Segundo consta, o ato de posse dos navios realizou-se ao meio dia, começando pelo vapor Persia onde houve a substituição do pavilhão teuto pelo brasileiro, seguindo-se do Minneburg e do Salamanca. Seguindo o relato do jornal paraibano, consta que as tripulações dos dois primeiros navios alemães citados receberam as notícias e as ordens sob “grande indiferença”. No entanto, em relação ao Salamanca, a situação foi diferente. Naquele navio, a cerimônia.

“…revestiu-se de magna solenidade, formando na pôpa, além da força de polícia toda a tripulação, facto que se verificou por ser o commandante desse ultimo vapor, oficial da marinha tedesca. Antes da troca de bandeiras, o commandante, em idioma allemão, proferiu uma allocução aos seus compatriotas, finalizando-se com viva ao kaiser Wilhlelm…” (O NORTE, 5 de junho de 1917, ed. 2606, p. 2).

A “aventura” alemã em terras paraibanas, havia chegado ao fim. Quanto ao destino da maior parte das tripulações daqueles navios alemães, pouco se sabe. Mas é certo que muitos permaneceram no Brasil, preferindo adotar esta terra como uma nova pátria, em contraste com a sua, destruída pela guerra. 

Créditos

Exposição Virtual: A navegação mercante em tempos de guerra

Curadoria & Texto

Historiador Me. George Henrique
Coordenador de Pesquisa e Acervo
Museu Marítimo EXEA

Diagramação

Ticiano Alves
Coordenador de Exposições / Designer
Museu Marítimo EXEA

Revisão da Exposição

Leandro Vilar
Diretor Geral
Museu Marítimo EXEA

Raphaella Belmont Alves
Diretora Executiva | Revisora ortográfica
Museu Marítimo EXEA

Camila Rios
Diretora Técnica | Museóloga
Museu Marítimo EXEA

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