Por ahcravo gorim – António José Cravo | Sessão III
sou mulher que baste neste mar de homens rainha dos ventos e das areias senhora de muitos saberes e sofreres
sou mulher que baste para dizer o que sinto gritar com a canalha homens e mulheres que vêem não o trabalho mas a festa de estarem de férias terem espectáculo grátis
arrancam das redes o peixe miúdo a sardinha que salta o jaquinzinho
deixai o peixe a quem por ele lutou
a faina começa com ela as juntas
o barco faz o lanço e regressa à areia então o chocalho toca suave
depois é a vez das redes lento e forte vai alando o chocalho mal se ouve o passo é forte pesado
súbito as bóias é preciso ser rápido para não se perder o peixe as juntas correm os homens gritam todos ajudam a chegar ao saco
então o chocalho canta uma música única corre pela areia venha peixe ou não a música chega à exaustão
o tempo passou como o norte pela areia deixou-me aqui seguiu viagem
plantado neste areal sou mais uma árvore raízes fundas cravadas no mar arrancando cada dia o sustento
o tempo passou com ele passarei também serei memória se o for poeira no vento nada mais
sou a que nunca ficou em casa nunca foi ao mar
sou a que ajuda a empurrar o barco a que o espera em terra
sou a que escolhe o peixe entre duas picadas de peixe aranha se levanta e nasce na areia um outro rio
sou a mãe a mulher a filha a viúva
sou a mulher da arte que a arte não lembra
amanhã outro dia será
é assim no mar vive-se cada dia como se o primeiro o último
amanhã outro copo virá
é assim na tasca um copo de ressaca uma onda varre o corpo uma carta sai do baralho uma noite passa no tempo
amanhã outra faina será
vida de pescador é percorrer em terra caminhos que no mar rasgou
e eu sou
o barco vai partir as gaivotas barcos de outros ares esperam peixe na rede sobras a rolar nas ondas
o barco vai partir enfrentar as ondas correr atrás do vento voar através das nuvens planar sobre as águas
sorte se encontrar um cardume e o transformar em refeição
o barco vai partir partimos com ele ?
as ondas beijam-me os pés carícias de irmã
os pés enterram-se na areia é este o meu passeio
aqui inicio o caminho da vida de ser daqui
comigo levo o futuro de ser mãe um dia sendo mulher hoje
rente ao mar olhos abertos ao mundo caminho sempre
não sei de outro andar
nada tenho tudo possuo é esta a minha riqueza
sou feliz aqui onde o mar me faz sentir gente me chama pelo nome enche de sal e areia cobre de escamas oiro prata
atiro-me à água vestida se preciso for se a rede o pedir se o barco quiser se me apetecer
sou feliz aqui à beira mar nada e criada mulher feita de sal e mar
isto tenho para vos dar
há quanto tempo não sonho
afinal o mar não é de vinho e o ti borras nunca foi à américa
ficámos onde nascemos
lembro-me de criança ainda ajudar a minha mãe na escolha do peixe ver no meu pai o eu de amanhã
as dunas eram então o meu esconderijo agachado no seu ventre espreitava o futuro
era o mar que me chamava
olho o peixe salta na rede estrebuchando na agonia do sufoco
também isto devo aprender a linguagem da morte jamais me será estranha
gostaria de brincar com aqueles peixes prateados as minhas bonecas vivas
mas aqui não é lugar de brincar
no meu rosto a mulher que deste tamanho já sou contempla o trabalho que a rede encerra em que participei com as migalhas que tinha para dar
como são grandes estes dias com eles cresço fico maior mulher do mar