EXPOSIÇÃO VIRTUAL

Quando o mar trabalha

Por ahcravo gorim – António José Cravo   |   Sessão IV

esperamos peixe
canastra à cabeça
prontas para partir

passo miúdo correr quilómetros

levaremos à terra
o pão do mar

os nosso gritos cantados
chamarão as gentes
abrirão portas janelas
acenderão fogareiros

por todo o lado
a mesma pergunta

“o mar trabalhou hoje ?”

trabalhou freguesa
é peixe do mar

e a corrida continua
até a canastra esgotar

pende-me da boca o cigarro

assim os dias
escorregam pelo tempo

olho o peixe
ainda a saltar
é pouco não basta
faço as contas
a este viver
cansado
mais que o cigarro

outro lanço se seguirá

talvez
um sorriso na face vá nascer
com sabor a esforço compensado
peixe que seja pão
para todos

um cigarro pende-me da boca

recordo-te
a alar cordas e redes
nas vozes de mando
que ao arrais cabem
nas conversas que tínhamos à beira mar
por entre o rebentar das ondas
e os gritos das gaivotas

recordo o mar
o teu mar
que vi crescer nos olhos
dos pescadores
quando te disseram adeus
regueiras
que lhes rasgavam o rosto
caíam na terra seca
feitas pedras

recordo-te
há um mar que teima em crescer
dentro de mim
as ondas rebentam-me no peito
gritam-me aos ouvidos o teu nome
não há noite em que te não veja

recordo-te
no silêncio da tua ausência
continuo a ouvir a tua voz

“é peixe do maaaaar!!!!”

e o mar corria
pelos caminhos
entrava nas casas
matava outras fomes

uma sardinha
para quantos ?
quantas sardinhas
para um ?

de novo o mar pingava
da broa para o prato
bebido lambido sorvido

mesmo que agora
já não corras
nem uses canastra

ainda oiço na rua a tua voz
quando a mesa se enche de mar

como é belo o fim do dia

arrumadas as artes
o barco adormece suavemente
nos braços da areia

uma gaivota
perde-se no longe antes
de lhe vir fazer companhia

na tasca os homens convivem
recordam histórias antigas
jogam às cartas e ao dominó
entre dois copos de três
três copos quantos
a noite é longa

na barraca
na casa do bairro
aguardam a mulher e os filhos
é ela que guarda a casa
que garante que este barco não se afunda

como é belo o fim do dia

serás barco concha
casa

em ti me refugio
da raiva das ondas
a ti me encosto
no descanso breve
entre dois lanços

encontros
marcados pelo arrais

o mar aguarda
na boca o cigarro
queima como sal
também ele me consome

que vício
és tu mar

que cinza
sou eu

fui
jovem e cheia de vida
as marés eram-me então favoráveis

os barcos partiam e com eles
os meus olhos presos
nele

e ele voltava sempre
trazia-me beijos salgados
mãos fortes e gretadas

mãos nas mãos
na areia ao sol
namoro de mar

lembras-te

dentro de mim
o menino dorme

a criança que deveria
ter sido
pouco tempo o foi

esgotou-se quando
comecei a andar

correr atrás dos bois
redes barcos mulheres
o meu brincar

hoje já sou mais um
sei onde mora o pão
quanto custa

quando como
o peixe sabe-me a mar e suor
gritos e corridas
ondas e areia

dentro de mim
o homem já é

pelo mar entro
como se em casa
meigas as ondas
afagam-me as pernas
mãos de mãe
beijos de amante

irmã mais nova
de quantas por aqui andaram
trago no corpo a alegria
de estar viva

mulher menina
nada e criada
entre mar e areia

correm-me barcos nas veias
e são peixes estes braços
que te apertam
nas malhas de amar

maestro
o arrais lê o mar
na pauta das ondas

atentos olhos
escutam movimentos

a companha espera
a voz a ordem

tensas as cordas
fechado o cerco
as redes iniciarão
o regresso

na sinfonia do lanço
é o mar quem dita
os andamentos
o arrais quem os traduz

(assim aprendi
música
neste areal de luz)

SESSÃO V

Créditos

Exposição Virtual: Quando o mar trabalha

Poemas e fotografias

António José Cravo
Fotógrafo / Portugal

Diagramação

Ticiano Alves
Diretor Geral
Museu Marítimo EXEA

Revisão da Exposição

Leandro Vilar
Coordenador de Exposições
Museu Marítimo EXEA

Rebeca Garcia
Museóloga
Museu Marítimo EXEA

Raphaella Belmont Alves
Diretora Executiva | Revisora ortográfica
Museu Marítimo EXEA

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