Alcançar o oriente navegando pelo ocidente foi uma das rotas mais almejadas durante a Idade Moderna. Após uma jornada dura e repleta de provações, essa grande epopeia marítima acabou se concretizando pelas mãos do navegador português Fernão de Magalhães, protagonista da primeira volta ao mundo.
A descoberta da passagem localizada no extremo sul da América pelos europeus foi um dos episódios mais significativos da modernidade. A viagem, organizada pela Coroa espanhola, teve repercussões imediatas. Alguns autores atribuem o encontro da chamada “passagem-mundo”, posteriormente denominada Estreito de Magalhães, como o acontecimento fundador da mundialização, quando ocorre uma mudança sistemática de escala mundial.
A armada foi dirigida por Magalhães e a expedição estava formada por 5 embarcações: Trinidad , Concepción, Santiago, San Antonio e Victoria. No dia 20 de setembro de 1519, as cinco naus da chamada “Armada das Especiarias” deixaram Sanlúcar de Barrameda, iniciando uma jornada cheia de incógnitas, tendo por objetivo controlar o comércio de especiarias na Ásia (o “ouro” da época).
O rei de Castela, Carlos I da Espanha (Carlos V do Sacro Império Romano), havia ordenado que fossem encontradas as ilhas Molucas, onde, segundo relatos, havia em abundância especiarias como cravo, canela e pimenta, tão almejadas naquele momento. A armada deveria encontrar uma passagem localizada ao sul do continente americano, com o cuidado de permanecer na zona de navegação espanhola, para evitar conflitos com o reino de Portugal.
Magalhães possuía uma larga experiência como militar e como navegador. O português participou de campanhas militares importantes como a conquista de Malaca, no ano de 1511, que foi um episódio bélico extraordinário porque permitiu a abertura aos portugueses para a rota do extremo oriente. Magalhães participou, ainda, das campanhas portuguesas da costa ocidental africana. Tendo regressado à Portugal, se dedicou a estudar cartas geográficas. O português pretendia encontrar uma passagem para os mares da Índia através do ocidente. De acordo com os cálculos de Magalhães, as Molucas deveriam estar na região castelhana, definida pelo Tratado de Tordesilhas.
Posteriormente, houve a ruptura do navegador com a Coroa portuguesa, personificada na figura do rei Manuel I, que havia recusado a proposta de navegação de Fernão de Magalhães. O navegador se sentiu desprestigiado, e dessa situação surge a possibilidade de abandonar Portugal e migrar para Castela, onde ele acreditava que seria melhor aproveitado. E de fato foi.
Naquele período se navegava por estimações. Não se conhecia a longitude, por exemplo, e, para saber a latitude, os tripulantes se baseavam na altura do sol ou dos astros, realizando medições que faziam com quadrantes ou astrolábios, baseando-se na leitura das cartas náuticas conhecidas. A velocidade era sempre uma estimativa, através do que se chamava “ojo marinero” e da própria experiência marítima dos pilotos.
Uma das principais dificuldades da jornada foi a questão do abastecimento. A água rapidamente apodrecia e a comida rapidamente era tomada por insetos e outros bichos. As travessias eram tão longas que os alimentos inevitavelmente se acabavam ou estragavam. No desespero, os tripulantes comiam o que estivesse disponível. Além disso, havia uma doença que naquela época ainda não havia sido diagnosticada, o escorbuto, que devia-se, sobretudo, a falta de vitamina C. Todos esses fatores prejudicaram enormemente a navegação.
Sobre isso relatou Antonio Pigafetta, o cronista da primeira volta ao mundo: “Durante três meses e vinte dias não conseguimos comida fresca. Comemos bolo, embora não fosse bolo, mas poeira misturada com minhocas e o que restava cheirava a urina de rato. Bebíamos água amarela, que estava podre, por muitos dias. Também comemos algumas peles de boi que cobriam a parte superior do pátio principal.”
Em uma viagem tão longa como foi essa, é importante assinalar alguns pontos principais durante as paradas.
A armada partiu em 20 de setembro de 1519 em direção as Ilhas Canárias, após armazenar os últimos mantimentos e aparatos para navegação. Após a saída das Ilhas Canárias, a armada migrou para as costas do Brasil, Cabo de Santo Agostinho, fazendo um percurso nesse território até seguir em direção ao Rio da Prata. Já se sabia à época que não era possível desembocar em outro mar. Era preciso buscar, portanto, alguma fenda no território americano meridional e essa investigação deveria ser feita mais ao sul.
Um dos marcos da jornada aconteceu em agosto de 1520, no porto de San Julián, na costa atlântica argentina. Havia sucedido uma complicada rebelião entre os tripulantes. Alguns oficiais tomaram as armas e organizaram um motim contra o comando de Magalhães que conseguiu punir de forma veemente os revoltosos, inclusive, com condenações a morte. A revolta ocorreu em um momento de muita tensão (e não foram poucos os momentos assim durante o largo trajeto). Já se haviam passado muitos meses desde que a armada tinha saído da Espanha e nada importante tinha sido descoberto, com exceção do sul da Patagônia.
Após conter a revolta, Magalhães decidiu enviar o capitão da nau Santiago para que realizasse o reconhecimento do território mais ao sul. No entanto, um temporal de grandes proporções impediu que a solicitação fosse realizada. Não fosse isso, provavelmente os espanhóis teriam encontrado naquele momento a desejada passagem.
Os outros quatro barcos da armada saíram do porto de San Julián no dia 21 de agosto de 1520, em direção ao sul. Foi no dia 21 de outubro de 1520 que, finalmente, a armada encontrou a passagem que posteriormente foi denominada Estreito de Magalhães. Foram necessários vários dias de idas e vindas dos barcos a percorrer a região para ter uma confirmação daquele descobrimento.
Durante os dias de reconhecimento da região, na difícil travessia dessas águas desconhecidas, outro momento dramático aconteceu. Uma das naus, a San António, decide desertar e retornar para a Espanha. Magalhães “perde” alguns dias até entender, de fato, o que havia acontecido. Aquela havia sido uma perda enorme. A nau San António era a maior embarcação da armada e a que armazenava mais comida.
Restavam agora três barcos. No dia 27 de novembro, os tripulantes avistaram o “mar del sur” que era conhecido desde a viagem de Vasco Núñez de Balboa, em 1513, mas a comprovação deu-se com a armada de Magalhães. O mar recebeu a denominação de Mare Pacificum (mar do Pacífico). Magalhães acreditava que o pior da jornada havia terminado, mas foi um verdadeiro mergulho no desconhecido em um oceano que tem o dobro do tamanho do Oceano Atlântico. Era a primeira vez que um europeu cruzava aqueles mares e foram cem dias de aflição – e mortes.
Magalhães decidiu tomar a direção norte que não levaria diretamente as Molucas, que era o objetivo da expedição, mas sim as Ilhas Marianas, ou Ilha de Guam. O ponto seguinte seria as Filipinas. Nessa região ocorreu um embate entre os espanhóis e os governantes dos povos nativos da região. Houve uma grande batalha terrestre e os indígenas guerreiros do líder Lapu-Lapu acabaram matando o navegador português e sete dos seus capitães com flechas envenenadas. Estava finalizada, assim, a primeira parte da viagem.
No dia 27 de abril de 1521 a expedição ficou sem comando e foi preciso decidir quem seria o novo capitão da armada. Magalhães havia escolhido um piloto português, pessoa de sua confiança, para que ocupasse seu lugar em circunstâncias necessárias. Mas diante de um cenário de
desordem, os tripulantes decidiram escolher para dirigir a expedição os capitães
Gonzalo Gómez Espinoza e Juan Sebastián Elcano, e o escrivão Martín Méndez. A armada deveria seguir o destino que Magalhães queria, as Ilhas das Especiarias ou Molucas, para comprar especiarias (principalmente cravo, que era a mais cara e que traria mais créditos quando fosse vendidas) e para assegurar que o território formava parte da demarcação espanhola e não da parte portuguesa.
O destino finalmente foi alcançado. No dia 20 de dezembro de 1521 os capitães decidiram se separar para iniciar o caminho de volta. Juan Sebastián Elcano, com a nau Victoria, partiu primeiro para aproveitar os ventos de monções que levariam até a África. Elcano decidiu seguir a chamada rota portuguesa, mas indo por uma região mais meridional do índico, que ninguém havia tentado antes. Espinoza decidiu alcançar o México cruzando o pacífico.
Nas capitulações, que estabeleciam os deveres de cada uma das partes que participavam da expedição, constava que se fosse descoberto algo importante, a armada poderia escolher a forma mais rápida de retornar para a Espanha para dar notícia dos acontecimentos. Então Elcano, utilizando-se dessa medida de Carlos V, decidiu regressar pela rota portuguesa. Uma viagem novamente penosa porque os mantimentos encontravam-se em situação precária e eles não puderam parar em nenhum porto para evitar suspeitas e desconfianças dos portugueses. Foi um esforço extraordinário chegar até Cabo Verde, de onde a armada já partiria em direção a Espanha.
Três anos depois de sua partida, a armada chegou carregada de especiarias e sob o comando de Juan Sebastián de Elcano, depois de completar a primeira volta ao mundo da história. A armada trazia apenas 21 homens: 18 expedicionários e 3 indígenas das Molucas. No dia seguinte Elcano se dirigiu com seus homens às igrejas de Nuestra Señora de la Victoria e Nuestra Señora la Antigua. Eles iam descalços e em mangas de camisa e carregando uma vela, assim como Salaverría representou em seu trabalho que se consagrou como um dos símbolos da primeira volta ao mundo.
Autora
Sylvia Brito / Historiadora e Pesquisadora Associada | Membra do Conselho Científico
Para mais informações sobre a temática, consultar:
GARCIA, José Manuel. A viagem de Fernão de Magalhães e os portugueses. Lisboa: Editorial Presença, 2007.
MARTINIC, Mateo. Historia del Estrecho de Magallanes. Santiago: Editorial Andrés Bello, 1977.
O’DONNEL, Hugo. España en el descubrimiento, conquista y defensa del Mar del Sur. Madrid: Mapfre, 1992.
ONETTO PAVEZ, Mauricio. Historia de un pasaje-mundo. El estrecho de Magallanes en el siglo de su descubrimiento. Santiago: Universidad Autónoma de Chile, 2019.