O personagem Simbad, o Marujo (as-Sindibad al-Bahri) protagoniza sete aventuras em meio aos contos que compõem as Mil e Uma Noites, famosa coletânea de contos de origem árabe, persa, egípcia, indiana e chinesa, cuja versão mais popular foi a traduzida e organizada pelo escritor, tradutor e orientalista Antoine Galland (1646-1715) no começo do século XVIII.
No entanto, as viagens de Simbad não faziam parte dos manuscritos das Mil e Uma Noites que Galland teve acesso, de fato, várias histórias que compõe o livro, como a do Aladim e a lâmpada maravilhosa e a de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, também não faziam parte das versões que circulavam na época, pois se tratavam de contos avulsos, mas Galland ficou encantado com elas e as acrescentou em sua versão. E graças a esses acréscimos, as histórias de Simbad, Aladim e Ali Babá se tornaram mundialmente famosas.
Mas voltando ao marujo Simbad, o que esse conto fantástico tem a nos dizer sobre as navegações árabes? Primeiramente, a ideia de que os árabes sempre foram um povo unicamente de desertos e jardins luxuriantes, é imprecisa. Realmente os árabes vivem num país desértico, e os jardins são bem quistos para eles (e até sagrados em algumas épocas), entretanto, parte da população árabe acabou desenvolvendo a navegação, principalmente a partir do contato com os persas, sírios, egípcios e bizantinos.
A história de Simbad ocorre durante o reinado do califa Harum al-Rashid (r. 786-809), um dos mais ricos e poderosos monarcas do Califado Abássida (750-1258). Al-Rashid inclusive é citado em outros contos no livro. A trama se inicia em Bagdá, em que um homem pobre chamado Simbad ouve música alta e gargalhadas advindas de um palacete, ele ao investigar a respeito, fica sabendo que a moradia pertencia a um rico mercador chamado Simbad. Os dois acabam se conhecendo, então o velho mercador narra sete viagens que ele realizou, as quais lhe fizeram ganhar fortuna e viver aventuras e perigos.
As sete viagens de Simbad ocorrem em locais fictícios pelo Oceano Índico, sul da Índia, leste da África e possivelmente no que hoje seria a Malásia ou Indonésia. As narrativas trazem elementos fantásticos como a presença de monstros, animais gigantes e povos fabulosos. Além desses elementos também é possível encontrar referências a condição de Simbad e sua tripulação irem atrás de especiarias, joias e artigos de luxo. Os mesmos produtos que motivaram os europeus na Idade Moderna, a atravessarem oceanos para ir às Índias, já eram cobiçados e comercializados pelos árabes em meados da Idade Média.
Graças ao comércio terrestre e marítimo, as caravanas muçulmanas trouxeram da Índia e da China várias mercadorias para o Oriente Médio, as quais eram levadas ao Mediterrâneo e vendida aos europeus. Para se ter ideia, entre os produtos que foram exportados estavam a cana de açúcar, a laranja, o limão, o melão, o arroz, o algodão, a canela, o gengibre, o cravo, a pimenta, o açafrão, o café, o chá, além de incenso, mirra, seda, brocado, joias, ouro, prata, fragrâncias, tinturas etc.
Os árabes criaram rotas comerciais pelo Índico, fundando portos e cidades na África oriental como Sofala (Moçambique), Mogadíscio (Somália), Zanzibar (Tanzânia), Mombaça (Quênia) e Melinde (Quênia), de onde importavam ouro, ferro, marfim, peles, essências e outros produtos. O próprio viajante veneziano Marco Polo (1254-1324) citou algumas dessas cidades em seu livro, embora ele não chegou a visitá-las. No século XVI, os portugueses disputaram com os árabes o controle de algumas dessas cidades.
Na Península Arábica, os territórios atuais do Iêmen e de Omã, eram no medievo importantes zonas mercantes, com prósperos portos como Adem, Esterim, Dufar, Escoréia (atual ilha de Socotra) e Calatu. Essa região era tão movimentada de embarcações as quais partiam de portos do Egito, Arábia, Omã, Iêmen, Pérsia e Índia, que a região foi nomeada de Mar Arábico, termo que conserva ainda hoje. O próprio Simbad percorria esse mar, pois em suas histórias ele zarpava de Baçorá (no sul do Iraque), atravessando o Golfo Pérsico.
Outro aspecto a salientar sobre as navegações árabes foi o desenvolvimento de tecnologia náutica. Os navios árabes faziam uso de velas latinas (ou velas triangulares) e as velas bastardas, as quais eram mais eficazes de se navegar pelo Índico. No entanto, o grande mérito deles em termos náuticos foi o uso e desenvolvimento de instrumentos de localização. A matemática, a astronomia e a física foram ciências que ganharam atenção desse povo, condição essa que o califa al-Rashid fundou a Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikmah) em Bagdá, a qual foi a maior biblioteca do mundo islâmico por séculos, sendo também um importante centro copista, tradutor e uma escola.
Graças aos investimentos nas ciências, os navegadores árabes passaram a adotar instrumentos de navegação e localização. Eles empregaram a bússola (agulha magnética), a qual havia sido inventada pelos chineses; aperfeiçoaram o quadrante dos gregos; atualizaram o astrolábio, adaptando para uso no mar, o qual usava a posição das estrelas para se localizar, sendo mais tarde substituído pelo sextante; desenvolveram cartas náuticas (embora que rústicas no início), além de outras tecnologias. Para comparação, essas tecnologias eram praticamente desconhecidas na Europa, em que os navegadores não usavam cartas, nem o astrolábio e nem a bússola.
Por fim, as viagens de Simbad apesar de serem fictícias, nos revelam a importância das navegações para os árabes na Idade Média, condição essa que graças a tradução de Galland, Simbad se tornou um personagem mundialmente conhecido, gerando novas histórias, desenhos, filmes, peças teatrais, histórias em quadrinhos, mangás, videogames e outras produções.
Por outro lado, os árabes foram também responsáveis por levarem aos europeus do Mediterrâneo o contato com alguns dos inventos que eles criaram ou aperfeiçoaram, além de contribuir para a difusão de mercadorias, plantas e saberes. Já no Índico, os árabes ao lado dos persas, controlaram as rotas comerciais por séculos, levando-os a entrar em conflito com os portugueses, holandeses e ingleses na Idade Moderna.
Referências:
MANTRAN, Robert. La expansión musulmana (siglos VII al XI). Barcelona: Editorial Labor, S. A, 1973. (Coleção: Nueva Clio: la historia y sus problemas).
ROBINSON, Francis. O mundo islâmico: o esplendor de uma fé. Barcelona: Ediciones Folio, 2007.
POLO, Marco. O livro das maravilhas: a descrição do mundo. Tradução de Elói Braga Júnior, Porto Alegre: L&PM, 2009.
SALIM, Ahmed Idha. A costa oriental da África. In: OGOT, Bethwell Allan. História Geral da África – vol. V: África do século XVI ao XVIII. 2ª ed. Brasília: UNESCO, 2010.