Em 1982, entrou no ordenamento jurídico internacional a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, cujo objetivo reside no estabelecimento de normas gerais de Direito Marítimo. O Brasil é signatário desta Convenção, promulgada por meio do Decreto nº 99.165 de 12 de março de 1990.
A partir de uma leitura da norma sobredita, identifica-se que nos seus artigos 149 e 303 há menção a objetos históricos e arqueológicos com imposição aos signatários do compromisso em promover a sua proteção sem, no entanto, tratar especificamente da guarda do patrimônio cultural subaquático.
ARTIGO 149
Objetos arqueológicos e históricos
Todos os objetos de caráter arqueológico e histórico achados na Área serão conservados ou deles se disporá em benefício da humanidade em geral, tendo particularmente em conta os direitos preferenciais do Estado ou país de origem, do Estado de origem cultural ou do Estado de origem histórica e arqueológica[1].
ARTIGO 303
Objetos arqueológicos e históricos achados no mar
1. Os Estados têm o dever de proteger os objetos de caráter arqueológico e histórico achados no mar e devem cooperar para esse fim.
2. A fim de controlar o tráfico de tais objetos, o Estado costeiro pode presumir, ao aplicar o artigo 33, que a sua remoção dos fundos marinhos, na área referida nesse artigo, sem a sua autorização constitui uma infração, cometida no seu território ou no seu mar territorial, das leis e regulamentos mencionados no referido artigo.
3. Nada no presente artigo afeta os direitos dos proprietários identificáveis, as normas de salvamento ou outras normas do direito marítimo bem como leis e práticas em matéria de intercâmbios culturais.
4. O presente artigo deve aplicar-se sem prejuízo de outros acordos internacionais e normas de direito internacional relativos à proteção de objetos de caráter arqueológico e histórico[2].
Face a lacuna sobre Patrimônio Cultural Subaquático na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, foi editada em 2001, Instrumento de regulação internacional específico, com mecanismos de cooperação entre os Estados Partes, inclusive extensível aos não signatários da primeira convenção citada.
O artigo 1º da Convenção de 2001[3] conceitua como Patrimônio Cultural Subaquático todos os vestígios da existência do homem de caráter cultural, histórico ou arqueológico que se encontrem parcial ou totalmente, periódica ou continuamente, submersos há, pelo menos, 100 anos, nomeadamente:
i) Sítios, estruturas, edifícios, artefactos e restos humanos, bem como o respectivo contexto arqueológico natural;
ii) Navios, aeronaves e outros veículos, ou parte deles, a respectiva carga ou outro conteúdo, bem como o respectivo contexto arqueológico e natural; e
iii) Artefactos de carácter pré-histórico.
b) Os oleodutos e cabos colocados no leito do mar não serão considerados parte integrante.
No artigo 2º, item 8, há informação expressa de que nada na Convenção de 2001 “será interpretado como modificando as regras do direito internacional e a prática de Estado relativa às imunidades soberanas, nem quaisquer direitos de Estado referentes aos seus navios e aeronaves de Estado”. Merece registro que qualquer Estado pode declarar ao Estado Parte em cuja Zona Econômica Exclusiva ou Plataforma Continental[4] o patrimônio cultural subaquático está situado, o seu interesse em ser consultado sobre a maneira de assegurar a efetiva proteção desse patrimônio cultural subaquático. Essa declaração deverá basear-se numa ligação verificável, especialmente cultural, histórica ou arqueológica, ao patrimônio subaquático em questão (Artigo 9º – Item 5).
Como já sinalizado anteriormente, o Brasil não é signatário desta Convenção. Em seu lugar, se utilizam as disposições insertas nos artigos 20, X e 48, V da Constituição, assim como a Lei Federal nº 7542/86, que dispõe sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terreno de marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar, e dá outras providências[5].
Art. 20 São bens da União:
X. As cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos;
Art. 48 Cabe ao Congresso Nacional dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: rias de competência da União, especialmente sobre:
V. limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo e bens do dom bens do domínio da União.
O principal mister da Lei Federal citada reside em determinar que compete ao Ministério da Marinha a coordenação, o controle e a fiscalização das operações e atividades de pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terrenos de marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar. O Ministro da Marinha poderá, ainda, delegar a execução de tais serviços a outros órgãos federais, estaduais, municipais e, por concessão, a particulares, em áreas definidas de jurisdição.
Com a devida vênia, o leque de normas acima elencado ainda deixa a desejar no que toca a proteção do patrimônio cultural subaquático. Embora exista o IPHAN, cuja atribuição mor é a catalogação e proteção do patrimônio cultural (nele incluído o subaquático), atualmente cabe a Autoridade Naval, cuja atribuição primordial é a manutenção da segurança da navegação e pagamento de recompensa, o poder decisório no assunto. Senão vejamos o papel secundário da “autoridade” cultural na lei sob foco:
Lei 7.452/86:
Art. 20. As coisas e os bens resgatados de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico permanecerão no domínio da União, não sendo passíveis de apropriação, doação, alienação direta ou por meio de licitação pública, o que deverá constar do contrato ou do ato de autorização elaborado previamente à remoção. (Redação dada pela Lei nº 10.166, de 2000)
§ 1o O contrato ou o ato de autorização previsto no caput deste artigo deverá ser assinado pela Autoridade Naval, pelo concessionário e por um representante do Ministério da Cultura. (Incluído pela Lei nº 10.166, de 2000)
§ 2o O contrato ou o ato de autorização poderá estipular o pagamento de recompensa ao concessionário pela remoção dos bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, a qual poderá se constituir na adjudicação de até quarenta por cento do valor total atribuído às coisas e bens como tais classificados. (Incluído pela Lei nº 10.166, de 2000)
§ 3o As coisas e bens resgatados serão avaliados por uma comissão de peritos, convocada pela Autoridade Naval e ouvido o Ministério da Cultura, que decidirá se eles são de valor artístico, de interesse cultural ou arqueológico e atribuirá os seus valores, devendo levar em consideração os preços praticados no mercado internacional. (Incluído pela Lei nº 10.166, de 2000)
§ 4o Em qualquer hipótese, é assegurada à União a escolha das coisas e bens resgatados de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, que serão adjudicados. (Incluído pela Lei nº 10.166, de 2000).
Art 21. O contrato ou ato de autorização de remoção ou exploração poderá prever como pagamento ao concessionário, ressalvado o disposto no art. 20 desta lei, in fine:
I – soma em dinheiro;
II – soma em dinheiro proporcional ao valor de mercado das coisas e bens que vierem a ser recuperados, até o limite de setenta por cento, aplicando-se, para definição da parcela em cada caso, o disposto no § 1o deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 10.166, de 2000)
III – adjudicação de parte das coisas e bens que vierem a ser resgatados, até o limite de setenta por cento, aplicando-se, também, para a definição da parcela em cada caso, o disposto no § 1o deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 10.166, de 2000)
IV – pagamento a ser fixado diante do resultado de remoção ou exploração, conforme as regras estabelecidas para fixação de pagamento por assistência e salvamento, no que couber.
§ 1o A atribuição da parcela que caberá ao concessionário dependerá do grau de dificuldade e da complexidade técnica requeridas para realizar as atividades de localização, exploração, remoção, preservação e restauração, a serem aferidas pela Autoridade Naval. (Redação dada pela Lei nº 10.166, de 2000)
§ 2o As coisas e os bens resgatados, dependendo de sua natureza e conteúdo, deverão ser avaliados com base em critérios predominantes nos mercados nacional e internacional, podendo os valores atribuídos, a critério da Autoridade Naval, ser aferidos por organizações renomadas por sua atuação no segmento específico. (Redação dada pela Lei nº 10.166, de 2000).
§ 3º O valor das coisas ou dos bens que vierem a ser removidos poderá ser fixado no contrato ou no ato de concessão antes do início ou depois do término das operações de remoção.
Mister consignar que tramitou no Congresso o Projeto de Lei da Câmara Federal nº 45/2008 que dispunha sobre o patrimônio cultural subaquático brasileiro e revogava os artigos 20 e 21 da Lei nº 7542/86, a redação dada pela Lei nº 10.166/2000. No entanto, foi arquivada na Legislatura de 2014.
À época da discussão legislativa, a Marinha do Brasil chegou a sustentar que a Convenção do Direito do Mar seria suficiente para regular o assunto, sendo discordante com a ratificação da Convenção que trata da Proteção do Patrimônio Subaquático, pois esta feria a soberania brasileira quando dispôs sobre a necessidade de consulta a outro Estado acerca de patrimônio localizado em nossa jurisdição, mesmo com disposição expressa de que o texto internacional não conflita com qualquer norma interna[6].
Não obstante, a Autoridade Naval era favorável ao texto do PLC 45/2008. Segundo a Marinha, o texto do Projeto atendia ao proposto pela Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático sem comprometimento da soberania do Estado brasileiro. Aduziu, também, que com o texto sugerido pelo Projeto, remanesceria o tratamento dos bens submersos sem valor histórico, cultural e arqueológico à Autoridade Naval, assim como as já existentes atribuições de salvaguarda da vida humana no mar, segurança da navegação e prevenção da poluição hídrica[7].
Caso não tivesse sido arquivado, a nova regulamentação do tema assim seria[8]:
Art. 3º O patrimônio Cultural Subaquático Brasileiro encontra-se sob guarda e proteção do poder público, cabendo a autoridade federal da cultura, ouvida a autoridade marítima, a emissão de autorização para que sejam realizadas operações e atividades de pesquisa no ambiente aquático.
[…]
Art. 4º Qualquer intervenção no patrimônio cultural subaquático brasileiro necessita da autorização expressa da autoridade federal da cultura, ouvida a autoridade marítima.
[…]
§ 2º A preservação in situ do patrimônio cultural brasileiro será considerada como a primeira opção antes de se autorizar ou iniciar qualquer atividade a ele dirigida.
Do exposto, infere-se que o texto arquivado delegaria à autoridade cultural, detentora de aptidão técnica correta, a avaliação e condução dos procedimentos de guarda e proteção do patrimônio cultural subaquático. Tal função não excluiria a atuação da Autoridade Marítima, que funcionaria como órgão consultivo no que se refere às suas atribuições natas, qual seja a segurança da navegação e correlatas. A obrigação de preservar o patrimônio cultural subaquático, prioridade de preservação “in situ”, não exploração comercial e a formação e partilha da informação, princípios da Convenção da Unesco de 2001, seriam atendidos[9].
Artigo originalmente publicado no LinkedIn: https://www.linkedin.com/pulse/patrim%C3%B4nio-cultural-subaqu%C3%A1tico-para-quem-tem-pressa-wanderley/
Foto da capa: http://www.unesco.org/new/pt/culture/themes/underwater-cultural-heritage/underwater-cultural-heritage/
Autora:
Advogada Giovanna Wanderley / Diretora Jurídica do Museu EXEA
Referências:
[1] Decreto nº 99.165, de 12 de março de 1990. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1990/decreto-99165-12-marco-1990-328535-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 19 jul. 2020.
[2] Idem.
[3] CONVENÇÃO SOBRE A PROTECÇÃO DO PATRIMÓNIO CULTURAL SUBAQUÁTICO. Disponível em: http://www.unesco.org/culture/por/heritage/laws/conv_patsubaqu_portu.pdf. Acesso 19 jul. 2020.
[4] Segundo Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar (United Convention on the Law of the Sea, UNCLOS) já referenciada, a zona econômica exclusiva (ZEE) designa a zona adjacente ao mar territorial, a até 200 milhas marinhas. – A plataforma continental designa o mar até a depressão da plataforma continental nas águas profundas, ou pelo menos até a extremidade da ZEE.
[5] Sofreu alterações pela Lei Federal nº 10.166/2000.
[6] Audiência Pública na Comissão de Educação, Cultura e Esportes do Senado Federal Projeto de Lei da Câmara nº 45/2008. Disponível: http://www.senado.gov.br/comissoes/CE/AP/AP20090902_Marinha_ComandanteTomeAlbertinoMachado.pdf. Acesso em 19 jul. 2020.
[7] Idem.
[8] Proposição original disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4445819&ts=1593934088553&disposition=inline. Acesso em 19 jul. 2020.
[9] Questões frequentes sobre Patrimônio Cultural Subaquático e a Convenção de 2001. Disponível em http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/pdf/FAQ_PT_complet.pdf. Acesso em 19 jul. 2020.