O consumo de bacalhau no final de ano no Brasil

A tradição de comer bacalhau no Brasil foi trazida evidentemente pelos portugueses, os quais desde a Idade Média já consumiam o Gadus morhua (bacalhau-do-atlântico), um peixe de águas frias encontrado no Atlântico Norte, todavia, diferente do que se pensa, o bacalhau não é nativo das águas próximas a Portugal, mas habita zonas ainda mais ao norte como próximas a Inglaterra, Irlanda, Noruega e o Canadá.

Bacalhaus (Gadus morhua).

Além dos portugueses, vários outros povos europeus também consumiam bacalhau como espanhóis, italianos, franceses, holandeses, belgas, alemães, ingleses, escoceses, irlandeses, dinamarqueses, noruegueses, islandeses e suecos. O motivo desse amplo consumo se devia a dois fatores: abundância desse pescado nos mares, por ser um peixe que se reproduz rapidamente e pela facilidade de se conservar sua carne.

Apesar do bacalhau ser um peixe que havia em abundância, atualmente o cenário é outro. Em algumas localidades do Atlântico Norte, o peixe já não é mais encontrado devido à pesca excessiva, por conta disso, os valores altos de sua venda. No entanto, antes dessa escassez acontecer no século XX, o preço do bacalhau era geralmente entre baixo a mediano, e o fato de ele ser vendido em postas, desfiado, salgado ou seco, facilitava no prolongamento da conserva. Por conta disso, países navais costumavam incluir bacalhau na ração de suas marinhas.

Pescadores limpando bacalhau para ser salgado. Henry Wood Elliot, 1887.

Dessa forma, a presença de bacalhau no Brasil remonta desde o século XVI, apesar de ser inicialmente um peixe consumido pelos marinheiros. Mas à medida que a colonização foi se desenvolvendo, os portugueses que se mudavam para o Brasil sentiam falta dos alimentos de sua terra como bacalhau, azeite, queijos, figos, maçãs, vinho, entre outros produtos, assim, surgiu um comércio de importação de bacalhau seco, o que encarecia a mercadoria para os colonos.

Embora que em Portugal em determinadas épocas o bacalhau foi considerado “comida de pobre”, pois devido ao seu cheiro e sabor fortes, os portugueses nem sempre apreciavam esse pescado, preferindo o arenque, a sardinha e outros tipos de peixes. De qualquer forma, no Brasil, até hoje o bacalhau é uma iguaria, algo que se difundiu melhor no século XIX, com o estabelecimento da Corte Portuguesa a partir de 1808, além das melhorias dos portos e rotas de comércio ligando Portugal e Inglaterra, inclusive empresas inglesas e norueguesas vendiam bacalhau no Brasil. E o grande fluxo de importação desse pescado gerou uma moda no Rio de Janeiro naquele século, condição essa que os restaurantes chiques disputavam para ver quem servia o melhor bacalhau do Porto, ou bacalhau à Gomes de Sá, entre outras receitas do tipo.

Exemplo de bacalhau à Gomes de Sá, receita surgida no XIX que se popularizou no Brasil ainda naquele século.

Mas por ser um peixe caro para o consumidor brasileiro, o bacalhau costumava normalmente ser vendido em períodos religiosos da tradição cristã como a Páscoa e o Natal. Hoje em dia é mais difícil encontrar pessoas que consumam bacalhau durante a Quaresma e a Semana Santa devido ao preço elevado do produto, mas quando o valor era menor, era comum várias famílias brasileiras comprarem bacalhau durante o período quaresmal e pascoal, consumindo ao longo do mês, não apenas durante a Véspera de Natal e o Natal.

Mas devido ao aumento dos valores e a escassez de bacalhau em determinadas localidades, os brasileiros ao longo do século XX deixaram de consumir regularmente bacalhau durante a Páscoa, reservando essa iguaria para o Natal e em alguns casos para o ano Ano Novo. Mas por que essas duas datas religiosas em específico? A resposta se deve também a um motivo religioso.

Durante a Quaresma, o período que marca os quarenta dias que separa a Quarta-feira de Cinzas da Sexta-Feira Santa, a doutrina católica estabeleceu o jejum diário, mais tarde foi vetado o consumo de carnes vermelhas e até de aves, porém, o consumo de peixe ainda é permitido. Por conta do bacalhau em Portugal em determinadas épocas ser barato, isso permitia que famílias com menor condição financeira pudessem pôr em suas mesas carne de peixe. No caso do Brasil o contrário ocorreu, como as pessoas com dinheiro é quem tinham condições de comprar essa carne importada, o bacalhau foi eleito por motivos de status também, não apenas tradição, lembrando que o jejum quaresmal não estipula o tipo de peixe a ser consumido.

Exemplo de bacalhau à moda do Porto. As vezes chamado bacalhau à portuguesa.

Essa tendência de status em que o bacalhau representava a fartura na Semana Santa, mas especialmente durante o Natal e o Ano Novo, permanece até hoje, por isso não é difícil ouvir pessoas no Brasil dizerem que quem come bacalhau nesses feriados é “rico” ou “coisa chique”. Até mesmo restaurantes que vendem pratos à base de bacalhau costumam serem vistos como lugares de gente com dinheiro, por se tratar de um pescado as vezes até mais caro do que o salmão (Salmo salar).

Mesmo que alguns leitores possam indagar a respeito dos bolinhos de bacalhau que encontramos em restaurantes e bares como petiscos, não necessariamente eles são feitos de carne de bacalhau, mas de peixes similares como o saithe (Pollachius virens), o ling (Molva molva) e o zarbo (Brosmius brosme), que são vendidos como “peixes do tipo bacalhau”, usados até no preparo de outras receitas. Por isso é comum em alguns mercados encontrarmos as chamadas “iscas de bacalhau”, que na verdade são partes desses outros peixes geralmente.

A carne de bacalhau barata que é consumida no Brasil e em outros países, na verdade advém de outros peixes parecidos com o bacalhau.

Referências

CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2014.

CONSIGLIERI, Carlos. O Bacalhau na vida e na cultura dos portugueses. Lisboa: Academia do Bacalhau de Lisboa, 1998.

OLIVEIRA, Leandro Vilar. A culinária marítima no Brasil Colonial. Humana Res, v. 4, n.  6, p. 100-118, set/dez, 2022.

Leandro Vilar
Leandro Vilar

Sou historiador, professor, escritor, poeta e blogueiro. Membro do Museu Virtual Marítimo EXEA, membro do Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (NEVE).

Artigos: 55
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