Navegar é preciso
(Fernando Pessoa)
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso.“
Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essência anímica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Mestre em interpretar palavras e simbolismos, Fernando Pessoa como bom português, costuma em muitos de seus poemas falar sobre as aventuras no mar tendo em vista a importância deste na história de seu país. O poema reproduz uma antiga frase dita por Pompeu, general romano, 106-48 a.C., aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra (cf. Plutarco, in Vida de Pompeu). “Navigare necesse; vivere non est necesse“, ou seja, “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
No poema Navegar é Preciso, o poeta dialoga com toda a tradição ao evocar o percurso de errantes viajantes a partir da frase de encorajamento aos Argonautas, tripulantes da nau Argo que, segundo a lenda grega, foi até à Cólquida (atual Geórgia) em busca do Velo de Ouro.
O poeta parece relacionar três dimensões: o mito que fundamenta o imaginário da viagem; a história de Portugal como uma das grandes nações navegantes que protagonizou os grandes descobrimentos; e a criação literária (em especial a poética) como a grande e insuperável viagem pela linguagem.
A frase pode ser interpretada de muitas maneiras, o que gostaria de destacar é a antítese entre a navegação e a vida. Tendo em vista que para navegar são necessários muitos instrumentos precisos para o navegador se localizar e dar rumo ao seu curso, por isso “navegar é preciso”, pois é determinado com absoluto rigor. O que não acontece com a vida, tendo em vista que embora possamos planejá-la não é possível determiná-la com perfeição, pois algo escapa a precisão científica e a certeza do experimento. Sendo a vida cheia de inquietações, amores e paixões faz com que o sujeito se depare com as suas incertezas e o seu vazio, próprio do que é humano e por isso “viver não é preciso”.
Essa frase que se tornou uma espécie de refrão aos argonautas e aos navegadores – e por que não, a todos que se encontram nessa imensa nau que é a vida – ecoa na música brasileira numa bela canção de Caetano Veloso, Os argonaltas, que segue para encerrar este pequeno artigo. Até breve!
Autora
Professora Raphaella Alves – Diretora Executiva do Museu EXEA
Os Argonautas
(Caetano Veloso)
O Barco! Meu coração não aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia, o marco, meu coração O porto, não!… Navegar é preciso Viver não é preciso. O Barco! Noite no teu, tão bonito Sorriso solto perdido Horizonte, madrugada O riso, o arco da madrugada O porto, nada!… Navegar é preciso Viver não é preciso O Barco! O automóvel brilhante O trilho solto, o barulho Do meu dente em tua veia O sangue, o charco, barulho lento O porto, silêncio!… Navegar é preciso Viver não é preciso.
Referências:
OLIVEIRA, JOSÉ QUINTÃO DE, Os eus viajantes: o tema da viagem em Fernando Pessoa Professor de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
PESSOA, Fernando. Obra poética. Organização de Maria Aliete Galhoz. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
VELOSO, Caetano. Minha carreira. 1968. Disponível em: <http://www. caetanoveloso.com.br/sec_busca.php?language=pt_BRhf-busca=os+argonautas>.